Ilustração: Luciane Stocco
Para iniciarmos nossa caminhada no tempo, devemos nos voltar ao território que hoje é a América do Sul, na época em que era ocupado pelos habitantes originários deste lugar, fazendo uma viagem de, pelo menos, 700 anos. Neste contexto, e tentando imaginar como era a vida e a relação com a natureza estabelecida ao longo das gerações pelas sociedades que dominavam este espaço, é necessário nos aproximarmos da região da Bacia do Rio da Prata, a segunda maior da América do Sul e uma das maiores do mundo¹, abastecida por grandes rios como o Uruguai, o Paraguai e o Paraná, onde viviam os Tupis e os Guaranis.
Dentre algumas das lendas que tratam da descoberta do consumo da erva-mate, algumas muito interessantes estão relacionadas tanto aos Tupis quanto aos Guaranis. Elas narram de maneira épica e também mística o advento do consumo do Mate e a significância da árvore como ícone da paisagem natural que torna-se referência identitária para estes povos. Vale lembrar, antes de começarmos, que foi através do consumo dos nativos que a erva-mate se perpetuou na história e chega até nós hoje em dia, com suas mais variadas formas de consumo.
As Sete Quedas do rio Paraná: hoje submersas, compunham a paisagem que é tida como berço do consumo da erva-mate pelas lendas dos nativos da região. Fotografia de Helmuth Erich Wagner
A Erva-mate e os Nativos da América
A Lenda da Erva-mate Sapecada
Esta lenda envolve tanto os Tupis quanto os Guaranis, através da intermediação de dois personagens principais, Iára, uma jovem Tupi, que vivia na margem direita do Rio Paraná, na altura das hoje submersas Sete Quedas, a maior cachoeira do mundo em volume d'água², e Gupi, rapaz Guarani, que habitava a outra margem do Rio Paraná. Há alguns séculos os Tupis e os Guaranis encontravam-se em pé de guerra, e será em meio a este contexto que descobriremos de onde surge a erva-mate. Para isso, descrevemos os dois lados da história, a começar por Iára.
Ilustração: Luciane Stocco
Iára, a Tupi, recebe uma mensagem de Tupã
Iára era filha de um importante cacique Tupi, era muito bonita e benevolente, dedicava sua vida à saúde dos anciãos assim como das crianças. Todo dia pela manhã, no nascer do Sol, Iára banhava-se nas águas das Sete Quedas.
Em uma manhã, seguindo o seu ritual diário, Iára tomava seu banho e, compenetrada pelos pensamentos sobre algo que pudesse ajudar a recuperação da saúde dos mais debilitados, ao som intenso das águas milenares que bombavam pela paisagem de pedra das cachoeiras, ela se assusta com o repentino chamado gritante de sete araras, que pousadas nos galhos de uma árvore próxima, conversam diretamente com Iára, em Tupi, e dizem:
– Eis aqui o milagre de Tupã. Ele nos enviou, Iára, para te mostrar o Caá, que atenderá aos seus anseios.
Neste momento as sete araras levantam voo e revelam a árvore em que estavam pousadas: o pé de erva-mate.
Iára sai imediatamente das cachoeiras, correndo vai contar o que presenciou para seu pai e para o Pajé, e lhes oferece sua cabeça caso estivesse mentindo. Este é o primeiro acontecimento do dia que, segundo a lenda, mudaria em definitivo o destino da erva-mate. Agora conheceremos os fatos que se passaram do outro lado do Rio Paraná, para vermos onde esta história nos levará.
Gupi, o Guarani, e o castigo de Anhanguera
Gupi era um jovem e destemido guerreiro guarani. Corajoso, inteligente e caridoso, era muito respeitado entre seus convivas e era considerado um exemplo a ser seguido pelas crianças. Filho de um importante cacique Guarani, Gupi vivia em plena harmonia com a natureza, coletando sempre o suficiente, para que nunca nada se acabasse. Grande observador dos ciclos naturais, Gupi tinha uma plantação própria, cheia e da mais variada, e caminhava pelas matas sempre acompanhado de seu bom amigo Caraí, uma Anta (Tapirus terrestris).
Um dia Gupi e Caraí, cansados de uma intensa caminhada na mata, decidem parar para descansar aos pés de um milenar Jatobá, já conhecido por eles como um ponto de pouso em meio à floresta. Quando deitados, ao contemplar as belezas do interior da mata, observam o céu e percebem que o tempo estava fechando, as nuvens cinzas e densas rapidamente cobriram o azul que antes admiravam, e, mais rápido que um piscar de olhos, um raio atinge a copa do Jatobá em que se repousavam, que no mesmo momento é tomado por um imparável incêndio. Gupi e seu amigo fico apavorados, porém, corajoso e destemido, Gupi logo sobe à copa da árvore e consegue bravamente controlar o incêndio que certamente daria um fim à longa vida daquele Jatobá.
Exausto, Gupi e seu amigo, ainda enérgicos pela emoção impulsionada pela situação que enfrentaram, ficam admirados pela beleza do Jatobá recém-salvo, observando-o com atenção. Eis que subitamente um Caburé (Glaucidium brasilianum, ave de aparência semelhante à da coruja) aparece dos céus, pousa no Jatobá e fala diretamente a Gupi, em Tupi:
– Bravo Gupi, o fogo aceso queima todo o mal, você será castigado por Anhanguera (diabo), por ter apagado este incêndio!
Assim que avoou o Caburé, o castigo de Gupi se aproximava galopante, e é na punição de Anhanguera que nossos personagens se encontrarão.
A descoberta da Caá: União Tupi-Guarani
Amaldiçoado por Anhanguera, Gupi e seu amigo Caraí decidem tomar o caminho de casa, e já próximos da trilha que os levaria direto para o lar, avistam, às margens do Rio Paraná, um filhote de Capivara bebendo água enquanto uma faminta Onça Pintada se escondia atrás da vegetação armando o ataque ao indefeso filhote. Inconformado com a situação, Gupi, sem pensar duas vezes, corre em direção à Onça, dá um grito e espanta ela, porém, sem perceber o perigo, Gupi pisa em uma pedra escorregadia e cai nas turbulentas águas do Paraná, e a correnteza o conduz com intensidade em direção às Sete Quedas. Na tentativa frustrada de lhe salvar, Caraí pula na água e Gupi consegue se abraçar nele, porém a correnteza das cachoeiras era tão intensa quanto a maior força do mundo, e leva os dois amigos rio abaixo - a vingança de Anhanguera havia sido implacável.
Castigados fisicamente pelas forças da natureza, Gupi e seu amigo chegam com vida ao fim das cachoeiras, porém desacordados, os dois chegam à pequena praia de areia que se forma na curva do rio e são avistados por pescadores Tupis. Imediatamente os pescadores recolhem os dois e os levam à sua tribo, mostrar-lhes ao cacique e ao pajé. Ao chegarem, todos se espantam com o estado entre a vida e a morte em que Gupi e Caraí se encontram. O pajé ordena que seja dada água a eles, para que encontrem alguma força que os dê vida novamente. Gupi e Caraí são avistados pela benevolente filha do cacique, Iára, que, espantada com o estado de saúde dos dois debilitado, lembra-se do recado que as sete araras haviam lhe transmitido naquela manhã, pensando imediatamente nas folhas da Caá, porém ninguém sabia o modo de beneficiar as folhas daquela árvore. Foi um momento de tristeza para todos que assistiam a morte lenta e angustiante de Gupi e Caraí.
Iára, diante daquele silêncio fúnebre, dirigiu-se a Gupi e perguntou-lhe:
– Moço bonito, sabes um meio de purificar as folhas desta Caá? Tupã mandou-me dizer que estas folhas seriam remédio que cura as doenças e salva a vida daquele que a usar.
Gupi, em um supremo esforço, respondeu lembrando-se do que o Caburé lhe dissera:
– O fogo aceso queima todo o mal.
E acrescentou:
– Tragam sapê de Curí, queimem-no e sapequem sobre as chamas as folhas da Caá, que logo elas se purificarão.
Logo foi preparado o chá da Caá, adoçado com mel de abelhas. Assim que ingerido, Gupi e Caraí já se levantaram, suavemente, e recuperaram suas forças. Reavivado, Gupi dirigiu-se a Iára e a agradeceu por ter salvo a sua vida e de seu amigo, declarando-se escravo de Iára, que prontamente discordou e atribuiu a Gupi a descoberta do beneficiamento da erva.
Os pajés Tupis e Guaranis, animados com esta descoberta que representava a cura para suas nações, prontamente decidem, através do casamento de Gupi e Iára, reunificar estes dois povos, declarando Gupi como o cacique, para a alegria de todos. Gupi, em sua primeira ação como cacique Tupi-guarani, foi o de enviar folhas e ramos, assim como sementes da Caá, a Ilex paraguariensis, para as outras nações do continente, para que cultivassem esta planta e fizessem bom uso de seus poderes restauradores. Assim fez-se conhecido o modo de beneficiar as folhas da Caá e se espalhou o seu uso por boa parte do continente, levando, possivelmente, seu uso até o Peru, onde os Incas batizaram o porongo de "Mati", onde se bebe a erva-mate³.
1 Raúl A. Guerrero; et al. (June 1997). "Physical oceanography of the Río de la Plata Estuary, Argentina". Continental Shelf Research. 17 (7): 727–742
2 A Lenda da Erva Mate Sapecada está presente em uma publicação do ano de 1943, escrita pelo Doutor Hermínio da Cunha César, baseada em obras do Major José de Lima Figueiredo, importante pesquisador da história regional brasileira na década de 1930, General Couto Magalhães, que realizou relevante levantamento das culturas nativas do Brasil e suas origens, nas décadas de 1870/80 e nas obras de Guilherme Stein Junior, estudioso das origens comuns das religiões e linguagens, também durante a década de 1930.
3 É notável o fato da descoberta, nos túmulos pré-colombianos de Ancon, no Peru, que os Incas faziam acompanhar de seus mortos folhas de erva-mate, armamentos e tecidos, em uma região onde a planta não é nativa, revelando as possíveis trocas comerciais estabelecidas na América, como apontou o professor Aquino, em seu livro "Tereré",1986, p 317.