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Europeus na Bacia do Prata e a Caá

Como vimos nos capítulos que antecedem, o consumo da erva-mate na região da Bacia do Prata era abundante, fato que se atesta pelas diversas lendas indígenas que relatam o início do consumo da planta pelos Tupis e pelos Guaranis. Há a possibilidade que, antes mesmo da chegada dos europeus, o consumo da erva tenha se popularizado entre outros grupos étnicos nativos e co-habitantes deste mesmo espaço geográfico, como grupos do tronco linguístico Jê, que são representados pelos Kaingangues, por exemplo, que até hoje habitam o que hoje é o território do estado do Paraná.

 

Mas agora, como intitula o presente tópico, descreveremos como se estabeleceu o contato do europeu com a erva-mate, como eles interpretaram este hábito recorrente do cotidiano dos nativos da região do Sul da recém "descoberta" América do Sul.

 

À época das grandes navegações, desde o final do século XV, com os grandiosos feitos como o do comandante italiano Cristóvão Colombo, que chega à América Central em 1492, atravessando o Atlântico pela primeira vez na história, ou os feitos do português Vasco da Gama, que chega de barco pela primeira vez à Índia em 1498, as coroas ibéricas, representadas pelos reinos da Espanha e Portugal, disputavam a expansão cultural e econômica através dos mares, o que, por alguns, é considerado como os primeiros passos da globalização. Com a chegada da frota de doze embarcações de Pedro Álvares Cabral onde hoje é a Bahia, em abril de 1500, ficou-se estabelecido a descoberta e o conhecimento de uma grande porção de terra ao sul da América, que posteriormente, a partir de 1531, passou a ser colonizada pelos portugueses. Essa terra recém encontrada já estava dividida entre Espanha e Portugal, por um acordo assinado em 1492, o Tratado de Tordesilhas, que dividia, na realidade, as terras a serem colonizadas por estas nações ao redor de todo o planeta, incluindo aí localidades na Ásia e na Oceania.

   

Assim sendo, a América do Sul estava dividida entre as coroas espanhola e portuguesa, e o limite sul desta divisa dava-se, aproximadamente, onde hoje é a Baía de Paranaguá, no litoral do Paraná, ou seja, toda a região sul do Brasil, com a exceção deste pedaço, fazia parte do novo território do Império Espanhol. A primeira expedição espanhola organizada neste território foi liderada por Aleixo Garcia, realizada no ano de 1521, na qual foi descoberta a atual região do Paraguai, atravessando o Rio Paraná, assim como algumas partes da Bolívia. Aleixo morreu em 1525, em uma emboscada realizada pelos indígenas Payaguá, às margens do Rio Paraguai, e seus feitos não foram registrados oficialmente pela coroa espanhola, que enviou, agora no ano de 1535, sob a liderança de Pedro de Mendoza, uma expedição com a intenção de criar núcleos colonizadores na região do Rio da Prata. É durante esta expedição, no ano de 1536, que em relatos enviados ao Rei Carlos I da Espanha, os espanhóis escrevem sobre uma planta, que em forma de chá, era consumida abundantemente pelos nativos Guaranis da região - era o primeiro registro escrito sobre a erva-mate. 

   

A partir deste ponto, nos tópicos que serão apresentados a seguir, veremos como a erva-mate foi tratada pelos colonizadores europeus, após este primeiro registro oficial. Como eram diversos os interesses e as relações que os europeus estabeleceram no território, veremos como cada grupo atuou como papel fundamental no legado da caá erva-mate ao longo do tempo.

Indígena Xetá sapeca erva-mate em registro da década de 1950. Acervo do Museu Paranaense.
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Indígenas Xetá preparam erva-mate para consumo. Fotografias de Vladmir Kozák na década de 1950. Fonte: Museu Paranaense

Yerba Mate – o consumo e comércio espanhol nas províncias do Prata

 

Estabelecidos onde hoje é o Paraguai, os espanhóis que fundaram a cidade de Assunção em 1537, naquela expedição oficial liderada por Mendoza, conviviam (não necessariamente de maneira pacífica) com os Guaranis, de onde absorveram como prática cultural o consumo da erva-mate. E é a partir do consumo desta erva que os espanhóis vão consolidar o primeiro ciclo econômico na região, baseado na exploração da mão-de-obra escrava dos indígenas, os espanhóis vão estabelecer uma rede de abastecimento de erva, proveniente de ervais nativos já conhecidos pelos indígenas e conquistados à força pelos castelhanos. Esta erva-mate, proveniente sobretudo das florestas da região de Maracayu¹, chegou mesmo a ser utilizada pelos espanhóis como moeda de troca nestas províncias mais distantes. Domingo Martínez Irala, governador do Rio da Prata e Paraguai, com sede em Assunção, observando o potencial econômico e também social (através da união territorial espanhola na região) que as trocas promovidas a partir da erva-mate possibilitariam à definitiva conquista espanhola da região, decreta, antes de sua morte em 1556, uma lei que promovia a colonização e a dominação dos povos nativos através da organização de três tipos de povoações a serem realizadas pelos espanhóis, tratando dos estabelecimentos, suas funções e relação com o domínio dos nativos.

     

A relação que os espanhóis estabeleceram com os nativos e o território recém conquistado, assim como as dinâmicas impostas na produção e comércio da erva-mate, que nesse período já se consolidava como elemento social, econômico e cultural de relevância na então em formação da América espanhola da Bacia do Prata, sofreria um impacto relevante a partir das próximas décadas, quando viriam para a região os primeiros padres jesuítas, sobretudo a partir da instalação das reduções ou missões catequizadoras a partir de 1610.

 

A erva do diabo – o papel da Sociedade de Jesus na tradição ervateira

 

Fundada em 1534 em Paris, e reconhecida oficialmente pelo Vaticano a partir da bula papal de 1540, a Sociedade de Jesus, cuja seus membros são conhecidos por jesuítas, é uma organização religiosa que surge em um contexto de rupturas religiosas na Europa, e representa uma nova possibilidade à manutenção da influência da igreja de Roma. A Sociedade de Jesus, em oposição à crescente tendência do pensamento europeu que se afunilava na ideia da possibilidade do acúmulo individual como via para a salvação, oriunda das reformas protestantes promovidas no final do século XV por Martinho Lutero e consolidada por João Calvino sobretudo a partir de 1534 com a Teologia Reformada, os jesuítas defendiam ideologicamente a construção de uma sociedade baseada no trabalho e construção coletiva através da fé como um novo ideal social que aproximaria as pessoas da redenção espiritual².

 

Os Jesuítas estiveram envolvidos em importantes momentos da expansão ibérica ao redor do planeta, à época das grandes navegações e o estabelecimento de entrepostos comerciais que também eram grandes centros de troca cultural. Missionários jesuítas acompanharam a incursão portuguesa em Calicute na Índia, o que fez com que a ordem, nesta situação liderada por São Francisco Xavier, chegasse ao Japão e à China, dissipando os ideais da religião católica e convertendo novos fiéis, o que fez com que Sociedade de Cristo alcançasse alta popularidade e reconhecimento político pelas monarquias europeias assim como clerical no Vaticano.

 

Os primeiro jesuítas que chegam nas então Províncias do Paraguai e do Guairá, são os padres Manuel Ortega e Thomas Fields, em 1593, e ficam alojados inicialmente em Assunção, para depois conhecerem Villa Rica del Espiritu Santo e analisarem e compreenderem melhor as dinâmicas de exploração da mão de obra indígena em suas mais variadas funções, sobretudo na coleta e processamento da Erva Mate nos ervais nativos, que era utilizada como importante moeda de troca e fonte de riqueza para os comerciantes espanhóis.

 

Em 1610, uma ordem remetida pelo rei espanhol Filipe III ao então governador do Paraguai, Hernando Arias de Saavedra, determina que os Jesuítas deveriam instalar suas missões catequizadoras a partir da outra margem do Rio Paraná, e que se instalassem até onde o território fosse de domínio espanhol. Sendo assim, a partir desta data, os jesuítas criam as primeiras missões no Guairá, as missões de Nossa Senhora de Loreto e Santo Inácio Mini, onde acolhem, dentre nativos da região, diversos indígenas guaranis foragidos das imposições das encomiendas. A partir desta data, até o ano de 1632, os missionários da Sociedade de Jesus fundariam mais dez missões onde hoje é o território do estado do Paraná.

 

Inicialmente os padres jesuítas, ao observarem a miséria e a exploração à qual eram submetidos os indígenas, determinaram a proibição do consumo da Erva Mate pelos mesmos, pois consideraram que era “a Caá que motivava o sacrifício dos índios, reduzidos a escravos dos castelhanos e empregados nos misteres da cata de ervais, benefício e transporte do produto, de lugares tão distantes, às vezes, que levavam um ano para regressarem ao ponto de partida, sob o peso da carga castigadora”³ , por esta razão nomearam-na de a “Erva do Diabo”.

 

O consumo da “Erva do Diabo” entre os guaranis, por mais que proibido dentro das missões, continuou ocorrendo, pois este era um hábito que fazia parte da identidade destes indígenas e da ligação deles com a natureza que os cercava desde os tempos mais antigos, portanto, a proibição imposta pelos padres não se efetivou, o que fez com que eles, assim como os líderes indígenas que lideravam as missões, decidissem por desenvolver as técnicas de produção, colheita e processamento da erva, o que requisitou muitos estudos e observações.

 

Entre os anos de 1628 e 1632, as missões jesuíticas assim como as cidades espanholas do Guairá foram devastadas pelas bandeiras dos paulistas, que, liderados por Manuel Preto e Antônio Raposo, objetivavam afirmar a soberania da coroa portuguesa naquele território e ao mesmo tempo raptar indígenas com o intento de vende-los em São Paulo como escravos. Sitiados por alguns meses pelos Bandeirantes, os cerca de 12 mil indígenas, liderados pelo padre Antônio Ruiz de Montoya, fogem em 700 embarcações descendo o Rio Paranapanema até atingir o Rio Paraná, chegando posteriormente ao território atualmente argentino das Missiones e também no Rio Grande do Sul. Esta fuga ficou conhecida como o Grande Êxodo Guairenho. Estima-se que dos 12 mil indígenas que acompanharam Montoya na fuga, somente 4 mil tenham sobrevivido até o destino final.

 

Estabelecendo-se nestes novos territórios, as Missões passaram novamente a exercer um papel determinante no rumo da história da erva-mate. Estima-se que no ano de 1660, em uma missão instalada na Argentina, os jesuítas tenham conseguido desenvolver, definitivamente, o primeiro plantio de Erva Mate, fato que marcou significativamente a organização política e econômica da região da Bacia do Prata naquele período. Também é atribuído aos jesuítas o grande desenvolvimento qualitativo e técnico na colheita e processamento da Erva, elaborando um produto muito mais arrojado e menos rústico, se comparado ao produto que era comercializado pelos paraguaios a partir de seus ervais.

 

A fama da qualidade da erva missioneira logo se espalhou pelo mercado consumidor platino, sobretudo o das jurisdições de Buenos Aires, Tucumán e Corrientes, na Argentina e Santiago, no Chile, e a erva-mate jesuíta tornou-se a mais consumida nessas regiões, o que não agradou os comerciantes do Paraguai, que passaram a perder muito lucro devida a concorrência dos missionários, o que, com o passar do tempo, foi gerando uma série de desgastes entre os espanhóis do Paraguai e os padres jesuítas, que em 1767, agregado ainda a outros fatores, culminou com a expulsão da ordem de todo o território da coroa espanhola.

 

O legado deixado pelos jesuítas para a história da erva-mate se mostra indelével, tanto no desenvolvimento das técnicas de colheita, sapeco e cancheamento, que aprimorou a qualidade da erva e exigiu o desenvolvimento técnico nos demais polos produtores, o principal legado está na capacidade de desenvolver o cultivo da erva a partir do próprio trabalho do homem e na forma que significaram e ajudaram a perpetuar a erva-mate como ícone cultural e social da região sul da América do Sul.

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Caingangues, Bandeirantes e Tropeiros – O conhecimento do Mate na América portuguesa

Como pudemos verificar anteriormente, na América pré-colombiana, uma variedade imensa de contatos interculturais ocorria entre os povos nativos do continente através de caminhos percorridos, trocas comerciais, línguas faladas e práticas realizadas. Um dos elementos culturais mais marcantes dos povos Guaranis era o consumo da Caá, que carregavam em suas jornadas pelo sertão do que hoje é o Brasil. Nestas caminhadas, porventura, os Guaranis estabeleceram contato com os Caingangues, para os quais apresentaram a cultura da erva-mate, ensinando o tipo de planta e a maneira de prepará-la. Os Caingangues, habitantes do primeiro e segundo planaltos paranaenses, adquiriram o hábito e passaram a chamar a Caá de Congoim.

 

Já ao longo do século XVII, com as investidas das Bandeiras paulistas no interior do Guairá, hoje Paraná, foram estabelecidas diversas trocas entre estes portugueses e alguns nativos Caingangues do território, foi apresentada aos Bandeirantes paulistas uma planta consumida em forma de chá, que os paulistas, adaptando a pronúncia, batizaram de Congonha, nome que a erva-mate ficou conhecida na América portuguesa. Acredita-se que os Bandeirantes tenham levado, de certa forma, o conhecimento da erva-mate no interior do estado de São Paulo e, porventura, até a capital paulista.

 

Ao longo do século XVIII, o caminho das tropas promoveu uma unidade territorial brasileira, marcada pelas práticas, comércio e cultura, e em meio a este contexto estava a erva-mate. O comércio e as trocas promovidas pelo tropeirismo possibilitaram vida nova aos povoamentos portugueses abandonados, como o caso de Curitiba, quando boa parte de sua população migra para as Minas Gerais em busca de ouro, estabelecendo a troca de produtos tal como o charque ou o couro, pelo reabastecimento das tropas com erva-mate proveniente dos ervais curitibanos. Se encaminhando de Viamão, no Rio Grande do Sul, até Sorocaba, em São Paulo, os tropeiros consolidaram uma união territorial pelos estados que passavam, e o consumo da erva-mate, ou Congonha, se desenvolveu em definitivo do lado português da América do Sul. 

 

¹ Maracayu ficava em torno de 150Km nordeste da cidade de Assunção, de onde os ervais foram explorados pelos espanhóis paraguaios até pelo menos 1676, quando os Bandeirantes os expulsaram desta região, mudando a área de extração de erva para Tebicuary, como assinala Adalberto López. In: The Economics of Yerba Mate in Seventeenth-Century South America. Agricultural History, Vol.18 (Oct. 1974).

² Villoslada, R. G. (1991): Santo Inácio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola.

³ Conforme o relato que nos é apresentado por Teresa Urban, em seu “Livro do Matte”, 1986, p.16.

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O processo de colonização da região sul do Brasil por colonos de origem europeia acentuaram o processo de desmatamento da floresta, porém a erva-mate sombreada ajudou a manter em pé alguns remanescentes. Fonte: WEISS, 2017.

Para fazer referência a esta página, por favor cite: CEDERVA. A história da erva-mate: europeus na bacia do Prata e a caá. Curitiba, 2020. Disponível em: http://www.cederva.org/europeus-na-bacia-do-prata-e-a-caa.html. 
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